Cachimbos, devoção e a fuga matinal da loucura
O mundo é uma loucura. Ele não está assim, ele sempre foi assim. E aqui vivemos – no olho do furacão. Há loucura em todas as esferas da sociedade. É tudo estranho; efêmero. Corremos de um lado ao outro sem saber muito bem para onde estamos indo, mas corremos – a la Forrest Gump.
Como cristão, aprendi há alguns anos atrás uma disciplina para escapar todos os dias dessa loucura – a disciplina da devoção. Tive que aprendê-la pois não me era algo natural, e a aprendi em meus anos no seminário.
Não importava o quão louco seria o nosso dia, com todas as aulas, trabalhos e tarefas domésticas (além dos imprevistos, claro), sempre tínhamos a vacina contra loucura em nossas mãos ao acordar – era a hora da devoção. Essa hora era dedicada à leitura bíblica e oração particular. À essa fórmula básica eu sempre acrescentava um terceiro elemento – a música. Então era assim, antes de enfrentar toda a loucura do mundo, minha vacina era: leitura bíblica, oração, e música bem cedinho. Sempre colocava algo de música clássica ou Johnny Cash (que não deixa de ser um clássico, certo?) como fundo musical para esses momentos.
Lutero dizia que quanto mais tarefas lhe reservavam o dia, mais tempo ele precisava dedicar à oração a fim de conseguir auxílio divino para lidar com todas as suas responsabilidades – creio que ele estava corretíssimo neste sentido. Cada pessoa tem seus rituais particulares, o meu se fixou como:
1º – Um bom banho (daqueles demorados)
2º – Um café forte (sem leite, com pouquíssimo ou nada de açúcar)
3º – Leitura e oração (Salmos e literatura sapiencial)
4º – Boa música (repito, boa música)
Se eu quisesse fugir da loucura tinha que buscar a sabedoria pela manhã, de banho tomado (para despertar) e com uma xícara generosa de café (para energizar).
Cerca de um ano atrás, um outro elemento foi acrescentado à essa fórmula – o cachimbo. Como novato nessa arte, eu testei cachimbar em todos os momentos do dia: manhã; tarde; noite; madrugada; pós almoço; depois do trabalho e etc. Cachimbar é sempre muito prazeroso, mas para mim, fazê-lo bem cedo, antes de enfrentar a loucura do dia veio como a cereja do meu bolo ritualístico matinal.
O cachimbo clama pela reflexão tudo aquilo que leio e falo em oração. Essa pequena peça esculpida em briar tornou-se o incensário através do qual vejo a materialização das minhas orações através da fumaça que se eleva ao céu. Que momento único! Em um instante, tenho tudo o que preciso para fugir da loucura do mundo: a Bíblia, a oração, o café e o cachimbo.
C. S. Lewis disse que “o cachimbo dá ao sábio tempo para pensar e ao tolo algo com o que ocupar a boca”. No meu caso, é sempre o segundo uso.
Na confraria universal do cachimbo não existem apenas cristãos – e é muito bom que assim seja[1] – isso é fantástico. Existem confrades e confreiras de outras crenças, e também aqueles que tem dificuldades para crer em alguma coisa – mas eles também podem fugir da loucura. Nestes casos, essa fórmula é ligeiramente alterada. No lugar da Bíblia, às vezes, o jornal. Em vez das orações, as vezes, o regar das plantas, a caminhada e etc. O que segue inalterado nessa fórmula é: o cachimbo. O efeito é o mesmo, ou pelo menos algo muito similar.
Sei que tudo isso pode parecer bobagem, no entanto, ao caminhar para o trabalho dias atrás, em um dia em que eu havia demorado para sair da cama, levantado mais tarde e deixado de lado meu ritual matinal – me deparei com a sensação de desperdício. O fantasma da perda de nosso bem mais precioso e irrecuperável – o tempo – me assombrou. Era um dia lindo: o sol se revelava preguiçoso no horizonte, os pássaros faziam a trilha sonora, o clima estava agradabilíssimo e pensei: “Poxa, eu poderia ter acordado mais cedo para estar sentado aqui com meu cachimbo esperando o sol nascer e brindá-lo com fumaça”. Era o momento de lucidez antes da loucura, e eu deixe-o escapar. Lamentável.
Naquele dia, infelizmente, eu perdi aquela oportunidade e ela não voltará jamais. Todavia, mesmo sem saber se de fato terei essa oportunidade amanhã, não quero mais desperdiçá-la. Enfrentar o dia sem esse momento é enfrentar o dia um pouco mais louco. Não acham?
- Jader Carlos, o novato.
Enquanto escrevo:
- Savinelli Oscar 102 + G. L. Pease Westminster
- Johnny Cash – American Recordings III: Solitary Man
[1] Uma vez vi o confrade Joffre Swait chamar isso de “ecumenismo tabagista” – gostei dessa expressão.